Curitiba já teve caça às bruxas

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Curitiba já teve caça às bruxas



As histórias de perseguição contra bruxas e supostas feiticeiras costumam remeter à Idade Média, época em que a sociedade que era muito oprimida por regras sociais e por imposições da Igreja. Mas não faz tanto tempo assim que Curitiba também “caçava” aqueles com religiões e culturas diferentes da pregada pelo Vaticano.

No dia 23 de janeiro de 1775, o ouvidor da Comarca de Paranaguá, Antonio Barbosa de Matos Coutinho, lançou um edital na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba para avisar que haveria uma devassa geral para inquirir testemunhas sobre alquimistas, benzedeiras, feiticeiras e pessoas com pacto com o diabo, dentre outros crimes. Na época, as investigações e julgamentos cabiam às Câmaras Municipais, que responderam pelo Poder Judiciário até a Independência do Brasil, em 1822.

Segundo documentos históricos do Arquivo Público do Paraná, a devassa geral resultou na denúncia de duas mulheres, mãe e filha. O levantamento foi realizado pela advogada Danielle Regina Wobeto de Araujo, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Ela analisou, para a tese inédita de doutorado (ainda não defendida), os processos contra feitiçaria em Curitiba entre 1763 e 1777.

“A cidade teve, nesse período, 560 processos, sendo 60 contra mulheres. Dois deles foram por feitiçaria, em pleno auge do Iluminismo. O crime era atribuição das justiças eclesiástica, a Igreja, e comum, a Câmara Municipal”, diz Danielle. Ela destaca que o escrivão da Casa, Antonio Francisco Guimarães, foi um dos quatro denunciantes das rés, acusando-as de terem feito feitiços e pacto com o diabo. A mãe, Francisca Rodrigues da Cunha, tinha cerca de 60 anos, enquanto a filha, Luiza Rodrigues da Cunha, declarou ter 23 anos. 

Os registros apontam que as mulheres eram indígenas, da “nação carijó”, e estavam descalças no dia do julgamento. O marido e pai das acusadas de feitiçaria, de acordo com o processo, era “escravo do hospício”. “Outra denunciante, Romana Álvares Teixeira, falou que elas tinham matado seu marido com um feitiço e seduzido juízes para escapar do processo. Também teriam sacrificado bichos e aleijado uma pessoa”, relata Danielle.

“Uma curiosidade do processo é que foi chamado um feiticeiro do povoado de Ponta Grossa, que confirmou que o homem realmente morreu vítima de feitiço. No entanto, ele fugiu antes de se pronunciar no julgamento”, conta a pesquisadora. Já a defesa argumentou que a testemunha queria se casar com Luiza, que o rejeitou. Ele então teria feito a acusação para se vingar. Outra justificativa apresentada para pedir a absolvição foi que as rés haviam recebido educação católica. Presas desde 6 de fevereiro de 1775, mãe e filha foram absolvidas pelo ouvidor Coutinho no dia 22 do mesmo mês, por falta de provas.

O jornal Diário da Tarde veiculava notícias de bruxarias. O periódico está disponível para consulta na Biblioteca Pública do Paraná, em microfilme. (Reprodução - Foto: Chico Camargo/CMC).

Exorcismo

O outro processo da Câmara Municipal de Curitiba contra feitiçaria, no período pesquisado, foi instaurado no dia 7 de março de 1763. A “negra forra” Sipriana Rodrigues Seixas, casada e grávida, na faixa dos 40 anos, foi acusada por Manuel da Cunha de provocar doenças em sua esposa, quatro filhas e uma irmã. “O denunciante afirmou que ela ‘tinha um cartório’ com mulheres de nome ‘Fuã’ (não é possível identificar quantas eram). Ou seja, que elas estavam organizadas”, relata Danielle. 

“Ele disse que, devido aos feitiços de Sipriana e das Fuãs, suas familiares vomitavam baratas vivas, pedaços de ossos, cabelo e pernas de sapo, entre outras coisas”, completa. O processo menciona que foi chamado o reverendo vigário, e que apenas com exorcismos as supostas vítimas melhoravam. Outra acusação é que as mulheres faziam bolos envenenados, com os quais mataram algumas pessoas. 

Segundo a pesquisadora, uma das testemunhas afirmou que os arredores da Vila de São José dos Pinhais tinha muitas feiticeiras, subentendendo-se que as rés moravam na região. “O interessante é que a Romana, que 12 anos depois acusaria Francisca e Luiza, foi uma das pessoas que defendeu Sipriana, alegando sua inocência”, afirma.

A sentença saiu no dia 14 de junho de 1763, pelas mãos do juiz ordinário de Curitiba Manoel Gonçalves de Sam Payo. Elas foram condenadas à prisão pela prática de feitiçaria, sem um tempo estipulado. Sipriana, então, fez uma apelação à Ouvidoria de Paranaguá (Curitiba só se tornou sede da Comarca em 1812), mas não há informações sobre a continuidade do processo.

Há uma possível referência ao caso no “termo de vereanssa” da sessão de 10 de setembro de 1763. O juiz ordinário Sam Payo discorreu sobre mulheres que estavam presas na cadeia da vila “por crime que lhe arguirão partes que dellas denunciarão” e deveriam ser enviadas a Paranaguá, sede da Comarca. 

Ele pediu dinheiro ao Conselho para a remessa das detentas, mas o tesoureiro da Câmara Municipal de Curitiba argumentou que não seria possível, devido às “muitas despezas que se havião feito”. Não foi localizada, nas demais atas do ano e nas de 1764, outra menção às mulheres presas que deveriam ser enviadas a Paranaguá.

Outra pesquisadora, Liliam Ferraresi Brighente, já havia realizado um levantamento no Arquivo Público do Paraná sobre processos contra a feitiçaria entre 1700 e 1750. Ela identificou um caso de 1735, em Paranaguá. Denunciada por Manoel Gonçalvez Carreir, a índia Maria do Gentio da Terra foi considerada culpada e “degredada” (expulsa) da vila.

Fotografia de página do processo contra Francisca e Luiza Rodrigues da Cunha, de 1775. (Foto – Danielle Wobeto de Araujo/Divulgação).


Análise

“São processos típicos da época, sem lógica cartesiana e materialmente desgastados pelo tempo”, analisa Danielle. “Eles indicam a imposição da Igreja Católica por meio do direito e que a sociedade ainda tinha uma visão mágica do mundo. Apontam que as autoridades da Câmara Municipal preocupavam-se em manter a religiosidade”.

O zelo pela religiosidade é corroborado por diversos documentos da época. Primeira correição da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais e base para posturas dos futuros ouvidores e da Câmara Municipal, os provimentos do ouvidor Raphael Pires Pardinho, de 1721, não trataram apenas de questões para a organização da cidade. 

Dividido em 129 “artigos”, o documento trata, por exemplo, do pagamento do dízimo e da obrigação de todos assistirem e prepararem suas casas para as procissões de Corpus Christi e de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, dentre outras, sob a pena de multa de uma “pataca”. 

Já os provimentos de 1800, do ouvidor-geral e corregedor João Baptista dos Guimarães Peixoto, afirmam que os juízes ordinários deveriam prezar pela conservação da decência e respeito. Caberia a esses oficiais da Câmara Municipal “dar parte” ao corregedor de “pessoas que mostrarem publicamente pouca religião e que forem escandalosas”. 

“O Brasil não reproduziu a caça às bruxas vista na Europa. A Inquisição, de uma maneira geral, esteve mais preocupada em investigar novos cristãos (judeus convertidos) e sodomitas (homossexuais)”, complementa Danielle. “O perfil dos acusados de feitiçaria, tanto pela Igreja quanto pela justiça comum, era de mulheres pobres. Negras, pardas ou índias”.

De acordo com o “Dicionário do Brasil Colonial”, o país teve, entre os séculos 16 e 18, 200 acusações de fetiçaria. “Poucos foram os processos completos do Santo Ofício português nessa matéria. (…) Menos preocupada com a feitiçaria que com o Judaísmo, a Inquisição portuguesa perseguiu pouco a feitiçaria, rastreando mais o shabat judaico que o sabá diabólico”, explica a obra.

“Feiteira – Artes de Satanaz” dizia título de nota veiculada pelo Diário da Tarde sobre Anna Formiga, em 1899. O periódico está disponível para consulta na Biblioteca Pública do Paraná, em microfilme. (Reprodução – Foto: Chico Camargo/CMC).


Lendas urbanas 


No final do século 19 e início do século 20, quando já circulavam jornais em Curitiba, há diversos registros na imprensa sobre supostos casos de feitiçaria. O Diário da Tarde, por exemplo, possuía a seção “Vitrina do Diabo”, com viés sensacionalista. Uma das personagens das notícias é Anna Formiga. Segundo pesquisa publicada em 1991, do historiador Johni Langer, ela residia na rua Doutor Pedrosa, em trecho hoje denominado Benjamin Lins, e “era famosa por suas supostas ligações com o demônio”.

O Diário da Tarde publicou, no dia 8 de maio de 1889, uma nota intitulada “Feiticeira – Artes de Satanaz”. “Anna Formiga é o nome da mulher que diz ter relações com Satanaz, cuja vontade domina. É moradora à Rua Dr. Pedroza. Em noite passada, teve uma questão com um cabo do 13º regimento de cavallaria e jurou vingar-se”, dizia. A publicação afirmou que ela então lançou um feitiço contra o homem, cuja esposa adoeceu. “A polícia tomou conhecimento do facto”.

Dois dias depois, o Diário da Tarde veiculou a nota “O caso da feiticeira – Novas notícias”. O jornal denunciava “novas bruxarias”, sem vinculá-las a Anna Formiga: “Não seria máu que a polícia diligenciasse na descoberta dessas bruxas, feiticeiras ou encantadas, como quer que se lhes chame”. 

Autora do livro “Lendas Curitibanas”, a escritora Luciana do Rocio Mallon publicou uma história na internet sobre Anna Formiga, apelidada de "bruxa de Curitiba". O texto afirma que ela se chamava Ane O'Neil e fugiu da Escócia para escapar da acusação de matar crianças em “rituais macabros”. Em Curitiba, oferecia serviços de curandeira e lia a sorte das pessoas.

"Como a mulher tinha o traseiro avantajado, igual o de uma tanajura, e comia muitos doces, recebeu o apelido. Esta feiticeira tinha hipoglicemia e toda vez que sua taxa de glicose baixava, passava mal. Por isso, muitas vezes aceitava doces como forma de pagamento pelos seus serviços", relata. A lenda urbana justifica que o cabo a prendeu por furtar guloseimas de uma confeitaria, e então Anna lançou-lhe o feitiço, responsável por matar sua esposa. Já a fiança teria sido paga pelos clientes da "bruxa". 

Mas nem só das histórias da Anna Formiga vivia o Diário da Tarde. No dia 25 de setembro de 1901, por exemplo, o jornal trouxe a nota “Cartomantes e desordeiros”. “Alguns moradores da rua S. José, nas proximidades da rua Silva Jardim, queixão se contra a permanência n'aquelle ponto de uma família de cartomantes, que reunindo a noute em sua casa uma porção de desordeiros passam-n'a toda em um sabbat infernal, cantando obscenamente e fazendo enorme barulho com grande escandalo da visinhança”, dizia.

Nesta época, porém, a Câmara de Curitiba não respondia mais pelo Poder Judiciário. “Com a Independência do Brasil, as funções institucionais das Câmaras sofreriam algumas alterações. A mais digna de nota foi a perda de atribuições judiciárias", destaca o "Livro dos 300 Anos da Câmara Municipal de Curitiba". 

Tais histórias, então, passaram a fazer parte do imaginário popular. "A Anna Formiga realmente existiu, mas não há provas dos rituais atribuídos a ela. As lendas urbanas são exatamente isto: causos que o povo conta, sem comprovação científica", conclui Luciana.

A sociedade curitibana no final do século 19, época em que Anna Formiga era noticiada pelos jornais como feiticeira. A foto é da rua João Gualberto, em 1880. (Acervo Casa da Memória de Curitiba).

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