As múmias perdidas do Museu Nacional do Rio de Janeiro - RJ

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

As múmias perdidas do Museu Nacional do Rio de Janeiro - RJ

O Museu Nacional em chamas no Rio de Janeiro.

A verdadeira dimensão da tragédia ocorrida com o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, não pode ser medida em números, e será percebida por muitos e muitos anos daqui em diante. Permitir a destruição de praticamente todo um acervo científico, antropológico, arqueológico e histórico de mais de 20 milhões de peças significa permitir a destruição do próprio país. Um dentre os milhões de exemplos possíveis do tesouro destruído é o acervo de múmias que estavam no museu.

As múmias do Museu Nacional eram uma das atrações mais populares de seu acervo. Amazônicas, mineiras, egípcias, indígenas ou andinas, a coleção de múmias do Museu era a maior da América Latina, e uma das mais importantes do mundo. A coleção arqueológica egípcia do Museu era a maior e mais antiga da América Latina, e foi para o Museu Nacional que a primeira múmia egípcia foi trazida para o continente, trata-se da múmia Kherima, com cerca de 2 mil anos, foi trazida ao Brasil em um caixote de madeira em 1824 pelo comerciante Nicolau Fiengo. Dois anos depois, foi oferecida em leilão e arrematada por Dom Pedro 1º, que a doou ao então Museu Real, fundado em 1818 e instalado à época no Campo de Santana, na região central da cidade do Rio de Janeiro.

A cabeça de uma múmia amazônica.

Transe misterioso

Kherima destacava-se por apresentar membros enfaixados individualmente e decorados sobre linho, o que lhe dava aparência similar à de uma boneca – um estilo de mumificação diferente do da época, menos detalhista, em que os corpos eram “empacotados”. Além dela, existem apenas oito múmias desse tipo no mundo.

“Esse era um exemplar muito importante, por conta do tipo de enfaixamento, que preservava a humanidade do corpo; no caso, o contorno do corpo feminino”, disse à BBC News Brasil Rennan Lemos, doutorando em Arquelogia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e pesquisador-associado do Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional (Seshat).

No entanto, não era apenas essa característica que atiçava o interesse do público. Relatos de quase 60 anos atrás dão conta que Kherima teria provocado transe em quem se aproximava dela.

Na década de 1960, por exemplo, uma jovem teria tocado os pés da múmia e, fora de si, dito que ela pertencia a uma princesa de Tebas chamada Kherima, assassinada a punhaladas.

Já outras pessoas afirmaram ter tido um “mal súbito” quando estavam próximas ao corpo.

Kherima já havia se tornado objeto de culto quando o professor Victor Staviarski, membro da Sociedade de Amigos do Museu Nacional, ajudou a reforçar o misticismo em torno dela.

Controversos, seus cursos de egiptologia e escrita hieroglífica ao som de óperas como Aida, de Giuseppe Verdi, incluíam a presença de médiuns e sessões de hipnose coletiva – ao lado da múmia. Naquela época, alunos podiam tocá-la – e as reações inesperadas que resultavam desse contato alimentaram o imaginário popular.

“Algumas pessoas diziam que conversavam com a múmia e ela respondia. Em uma dessas conversas, ela teria dito que seria uma “princesa do Sol”, mas isso não faz o menor sentido científico, porque esse não era um título do Egito Antigo”, acrescenta Lemos.

Técnicas de tomografia permitiram verificar que Kherima era filha de um governador de Tebas, importante cidade do Egito Antigo. Segundo a pesquisa, ela tinha entre 18 e 20 anos e viveu durante o Período Romano no Egito, entre os séculos 1 e 2. A causa de sua morte nunca foi identificada.

A múmia egípcia Kherima.

O processo foi acompanhado na época por Sheila Mendonça, ex-aluna de Staviarski, atualmente vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da Escola de Saúde Pública da Fiocruz. Contatada pela BBC News Brasil, ela afirmou estar “muito emocionada” e sem condições de falar por causa da “enorme perda” do acervo do museu.

Sem sombra de duvidas, essa múmia era “peculiar”, para além dos feitos macabros ocorridos em sua presença. Mas pela forma com que chegou à coleção imperial, e por outras características.

A múmia dita “Kherima” ostentou por décadas uma máscara que não lhe pertencia de fato. A misteriosa figura feminina do Antigo Egito abrigada no Rio de Janeiro. Trata-se de uma jovem egípcia que faleceu com idade próxima aos 20 anos conforme foi revelado pela tomografia realizada há poucos anos.

Pelo cuidadoso e caro processo de embalsamamento realizado deve pertencer à elite da época. Foi necessário tempo e recursos para a elaboração de uma múmia assim única e muito singular. Houve toda uma intenção para preservar a feminilidade do corpo desta jovem.

A rara múmia do período de dominação romana no Egito, é notória por ter braços e pernas enfaixadas em separado do corpo. A peça também tem um passado de manifestações paranormais.

Uma obra de arte muito especial. Composta para parecer que a falecida ainda é vivente e bem sensual. Juntamente com as estatuetas de Menkheperre e da dama Takushi , mais a tampa de Hori e os shabits de Sei I, formavam o conjunto mais significativo das antiguidades egípcias no Museu Nacional da UFRRJ.

Múmias ficavam em exposição no Museu Nacional na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro.

Num dos dois esquife saítas da XXVI-Dinastia pertencentes à coleção, o de Pestjef, repousava uma múmia singular, também introduzida em tempos modernos, provavelmente durante a circunstância da montagem da coleção para venda por Fiengo. Mostrava ser um raro tipo de múmia egípcia, pertencente ao período romano muito tardio, provavelmente do Séc. I ou II, e apresentando o singular aspecto dos membros enfaixados em separado do corpo. Este tipo de enfaixamento apresentado é absolutamente contracultural, uma vez que de modo tradicional, as múmias eram configuradas formando um massivo corpo cilíndrico, do qual não se distinguia bem a silhueta humana, às vezes nem o pescoço da cabeça. A tomografia da múmia revelou traços e conformações físicas diferentes das características corriqueiras do povo egípcio antigo, pensou-se até que talvez fosse estrangeira. Este estilo de mumificação é altamente diferenciado do que é observado em todos os séculos e séculos da cultura funerária egípcia antiga.

A múmia de Kherima está suave e perfeitamente enfaixada, com relativamente pouco linho, sendo este de alta qualidade, exibindo assim uma silhueta deliberadamente definida. Contrasta fortemente com outras múmias do período romano, mal acabadas num enfaixamento por vezes trançado, esta múmia do Museu Nacional foi decorada de uma forma especial. Mostra inclusive atípicos detalhes pintados acrescidos ao tórax e à região pubiana, uma evidentemente uma sinalização esotérica, portadora de um significado peculiar e desconhecido. De acordo com especialistas do Museu Britânico, este estilo singular de enfaixamento, com membros em separado, bem poderia ser um revival bem tardio do estilo das pioneiras múmias embalsamadas com cerimonial funerário mais elaborado, no Antigo Império, mais precisamente na remota Era das Pirâmides. 

Naquela época o embalsamamento dos cadáveres era ainda muito primitivo, menos de dez exemplares de múmias do Antigo Império sobreviveram até nós, todas mal conservadas. Fica então a dúvida sobre o estilo e a origem exata dessa interessante múmia, muito provavelmente seja tebana, todavia não há engano em considerá-la como peça arqueológica extremamente relevante.

Após ser feita uma tomografia, constatou-se que a múmia de Kherima está associada a duas múmias completamente similares que repousam num museu de Leiden na Holanda, tanto na especial e cuidadosa decoração externa como no especialíssimo e elaborado processo de embalsamamento.

O cérebro retirado pelo nariz e posteriormente preenchido com pouca resina, a total retirada dos órgãos e uma improvável devolução ao corpo empacotados em linho é comum nos três exemplares, inclusive do coração que tradicionalmente era deixado intacto no corpo e neste caso foi retirado como se fazia com as outras vísceras.

O que se observa no interior do corpo são apenas pequenos pacotes de linho e resina, a cavidade está amplamente vazia. Kherima apresenta inusitados seios e mamilos falsos, moldados em linho e resina, também apresenta um inesperado anel de linho resinado em volta do umbigo, seus dedos dos pés perderam os envólucros, mas deveriam ser idênticos às múmias de Leiden.

Muito provavelmente estas três peças são da mesma família ou grupo social, somadas às duas múmias britânicas em Londres e Liverpool, com toda certeza foram todas embalsamadas pelos mesmos artífices de uma peculiar oficina de mumificação que adotava este estilo único de formatação e apresentação estética, todas surgiram à venda em torno de 1820, vieram do mesmo túmulo provavelmente. São peças única, raras e valiosas na história da mumificação do Antigo Egito, realmente significativas e preciosas, testes futuros de DNA poderão dar mais detalhes sobre este grupo de múmias.

Pesquisa da USP (Universidade de São Paulo) descobriu que a imperatriz Amélia de Leuchetenberg, segunda mulher de dom Pedro 1º, foi mumificada depois de morrer em 1876.


A múmia que conversava com o imperador Dom Pedro II

As viagens do imperador Pedro 2º ao Oriente Médio e ao Norte da África entre os anos de 1871 e 1876 renderam frutos que permaneciam guardados até hoje, antes do incêndio,--o imperador era um estudioso dos povos árabes e do Oriente Médio.

O monarca passou por lugares como Síria, Líbano e Palestina, mas foi no Egito que recebeu o presente que mais marcou sua passagem pela região. D. Pedro 2º ganhou do quediva (espécie de imperador do Egito Antigo) Ismail um caixão lacrado com a cantora-sacerdotisa Sha-amun-em-su, conhecida por entoar cânticos sagrados no templo dedicado ao deus Amon. Era com ela que o imperador conversava no Paço de São Cristóvão, o prédio onde hoje é o Museu Nacional.

Sha-amun-em-su morreu com cerca de 50 anos durante a 12ª dinastia do Egito, por volta de 750 a.C. Um exame tomográfico realizado no caixão mostrou que a cantora fora mumificada com vários amuletos, entre eles um escaravelho-coração, artefato utilizado pelos egípcios para "substituir" o coração dos mortos. Os egípcios acreditavam que a morte era um rito de passagem para outro mundo e, portanto, preparavam os mortos, retirando-lhes os órgãos e guardando-os em vasos canopos.

Caixão lacrado com a cantora-sacerdotisa Sha-amun-em-su, conhecida por entoar cânticos sagrados no templo dedicado ao deus Amon.

O caixão de Sha-amun-em-su permaneceu por mais de dez anos no gabinete de Pedro 2º, no palácio imperial da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, até a proclamação da República em 1889. Segundo artigo de Marcos Pivetta, publicado na revista "Pesquisa Fapesp" em 2014, a múmia era o "xodó" do imperador, que até trocava algumas palavras com o sarcófago.

"Toda a coleção de múmias do Museu Nacional foi adquirida pelo imperador Pedro 2º, a única que foi dada de presente para Pedro II foi a Sha-amun-em-su", disse Jorge Lopes, do Núcleo de Experimentação Tridimensional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ao UOL. Lopes é um dos responsáveis pelas tomografias e faz parte da equipe de Brancaglion. "Esse caixão em particular nunca tinha sido aberto, isso era muito raro de se encontrar"

Um estudo realizado em 2006 pela equipe do egiptólogo Antonio Brancaglion Júnior, do Museu Nacional, constatou que os egípcios colocaram enchimentos na garganta da sacerdotisa, algo incomum. Os pesquisadores acreditam que ela recebera uma proteção especial para que pudesse cantar no "mundo dos mortos".

A múmia andina Aymara.

Causa espanto constatar este elaborado, artístico e atípico processo de embalsamento justamente numa época em que a mumificação estava em plena decadência quanto a qualidade técnica, o padrão da época da dominação romana pode ser observado e comparado com a múmia dita “de Hori”, que apresenta o descuidado e mesmo rude aspecto característico deste período. Não é exagero apresentar está peça arqueológica e destruída no incêndio do Museu Nacional como uma das mais singulares múmias já descobertas na história da Egiptologia. O que está plenamente estabelecido é que foram elaboradas pela mesma equipe de competentíssimos embalsamadores.

Hoje provavelmente todo esse acervo de múmias está simplesmente perdido, e trata-se somente de uma diminuta parte do que representa a destruição do Museu Nacional. Assim como o incêndio é uma metáfora quase literal da atual realidade do país, em que o obscurantismo, os interesses financeiros e a mera ignorância colocam a ciência, a pesquisa, a história e a memória como descartáveis, o significado da perda das múmias é também um perfeito reflexo, de tesouros que, depois de resistirem a literalmente milhares de anos, agora foram destruídos pelo descaso, a burocracia, o obscurantismo.

Múmia chilena Chiu-Chiu foi encontrada enterrada no deserto de Atacama no Chile.

Fontes: BBC, UOL, Hypeness e Mundo Gump.

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