A Bailarina

terça-feira, 16 de maio de 2017

A Bailarina



Muitas pessoas sonham com apartamentos maiores, carros confortáveis, férias incessantes descobrindo países e lugares onde uma fotografia lhes mostra o que os seus olhos limitados nunca irão perceber. Eu nunca desejei, ou melhor, tive tempo para desejar, nada destas coisas. Eu fui atraída para o que se tornou o objeto dos meus desejos e depois uma parte de mim – de como eu passaria a existir. 

Era uma caixa de música comum; o espelho no interior da tampa, o espaço reservado para as joias e o palco de vidro desenhado com mosaicos circulares onde a bailarina que havia se perdido dançava em um tempo no qual não participamos. A chave que dava corda à caixa de música estava emperrada e era dona de um movimento impossível. Não podíamos escutar a melodia monofônica, metálica, que um dia junto com a bailarina aos rodopios imaginávamos ter encantado aqueles que a admiravam.

Éramos quatro crianças. Quatro irmãs. E não tínhamos ideia de como a caixa de música havia chegado à nossa casa. A minha irmã mais velha disse que a havia encontrado em nosso quarto assim que nos mudamos. A do meio disse que foi ela quem achou a caixa debaixo da pia do banheiro. A menor jurava que em um dia chuvoso escutara batidas na porta e ao abri-la a caixa estava lá. Eu sei que soa estranho. Mas pelo menos era isso o que as minhas irmãs falavam. De todas elas eu sou a única deixada com vida para lhes contar esta história. 

Certa noite eu esperei que todas as minhas irmãs dormissem e fui brincar com a caixa de música. Só. Sozinha, mesmo. Porque a caixa, não pertencendo a ninguém, obrigava-nos a dividi-la enquanto a outra aguardava a sua vez. Então, mesmo cansada, acordada a noite inteira, queria aquele momento com a caixa só para mim. Cruzei o nosso quarto bem devagar. E retirei a caixa da estante; agora a achando pesada como se algo infinitamente maior tivesse entrado nela. 

Voltei para a minha cama e a abri. Me olhei no pequeno espelho. Tentei girar a chave emperrada na fechadura. Era muito dura. Não se movia. A chave ereta e rija quase rasgou o meu dedinho. Fechei a caixa. E virando de lado a escondi com a barriga. Foi quando escutei uma das minhas irmãs se mexendo na cama, depois a outra, e depois a mais velha. Elas gemiam. Então eu pensei: “E se elas acordarem? Ah, eu sei. Elas irão tirar esta caixa mesmo sem música e sem bailarina de mim!” Deveria me esconder!

...Rastejei para debaixo da cama. E rastejei quase encostando na parede; ali estava mais escuro. Eu escutava-lhes do meu cantinho empoeirado apenas os gemidos, e junto com os seus gemidos, para a minha surpresa, a caixa começa a funcionar! 

Enquanto me olho no espelho – temendo que a música as acordasse – o chão se abre debaixo de mim e flutuando em descendência aterradora olhando no pequeno espelho eu vejo uma bailarina que, desfigurada, agarra o meu rosto, dizendo que o queria emprestado. Ou ela o arrancaria de mim. …E tudo se acalmou quando emprestei o meu rosto à bailarina. Não queria nunca mais dividir a caixinha de música com ninguém e a implorei que me ajudasse. 

Com um sorriso contorcido, parecido com uma careta, a bailarina pôs a mão na barriga, no meio do quarto que girava – e se encolhia. E vendo o seu corpo coberto de chamas onde a cabeça que queimava não era a dela, mas a minha, eu escutei a sua voz que rouca me dizia: “Não tenha medo menina, que eu te ajudo sim!” 

E foi assim que uma por uma das minhas irmãs acordaram pintadas de vermelho – e cada uma com um pedaço do pequenino espelho atravessando-lhes a garganta que não as deixariam mais falar. Nunca mais. 

Sim, hoje eu moro sozinha e já estou velha, bem velha – eu lhes digo. E moro aqui no porão desta mesma casa. Os meus pais logo se foram, depois das irmãzinhas, também pintados de vermelho. E aqui, nem eles nem vocês, nunca irão me encontrar.



Autor: Jorge Cardoso

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