Uma tradição carnavalesca preservada em Leme, no interior de São Paulo, conjuga monstros, palhaços e fantasias elaboradas, feitas com materiais reciclados, criatividade e consciência ecológica. O Carnaval rural também pode ser surrealista
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Monstros dançam e palhaços espalham o terror no Carnaval de Leme |
A tradição começou no início do século 20, com os primeiros imigrantes italianos e alemães que chegaram a Leme, cidade de 90 mil habitantes localizada 198 quilômetros a nordeste da capital paulista. Os colonos que iam para as grandes fazendas da região, como a Fazenda Cresciumal, fundada pelo Barão de Souza Queiroz no século 19, levavam na bagagem, além de muita vontade de trabalhar nas lavouras de café, parte de sua cultura, mitos e festas. Uma delas, a do carnaval de máscaras, inspirada nos seculares carnavais europeus, resistiu bravamente e ainda hoje é mantida pelos moradores da “colônia” de Cresciumal, como eram chamados os núcleos de casas dos trabalhadores nas antigas fazendas.
Embora não existam registros e documentos oficiais, sabe-se que o carnaval rural de Leme tem pelo menos 70 anos, quase ininterruptos, que já atravessaram quatro gerações. Uma das poucas interrupções da tradição aconteceu em 2006, quando parte da fazenda (a usina de açúcar Cresciumal) foi vendida a uma empresa francesa que demitiu inúmeros funcionários, entre eles os que moravam na casas da colônia e mantinham a tradição de confeccionar as fantasias.
Cinco anos depois, os moradores sentiram necessidade de retomar a antiga paixão e, assim, renasceu a peculiar folia dos monstros da Fazenda Cresciumal, que acontece no pátio da colônia, sempre aberta ao público, no último dia de Carnaval, na terça-feira. Em 2011, a festa foi realizada com força total, com a apresentação e o desfile de 52 máscaras. No passado não passavam de 40.
Os 70 anos do costume “abrasileiraram” tanto os moradores quanto a tradição das máscaras, que ganhou contornos distintos da festa trazida da Europa. As fantasias ganharam novos elementos e o Carnaval virou uma festa coreográfica de monstros e palhaços. A explicação da inusitada mistura é mais simples do que parece, afirma José Kilian, filho de alemães e italianos e participante da organização da folia há mais de 40 anos: “Inicialmente eram só máscaras de palhaço, mais tradicionais. Pouco a pouco, apareceram figuras de animais. E dos animais, surgiram os monstros”, conta o ex-morador da Fazenda Cresciumal.
Durante a festa, dois grupos de personagens – os palhaços e os monstros – têm funções diferentes e “invertidas”: aos monstros cabe dançar e cair na folia, exibindo sua feiura (e beleza) num desfile de horrores que chama a atenção pela precisão, pela criatividade e pelo realismo. Já aos palhaços cabe a função de aterrorizar os foliões, provocar correrias e assustar crianças, jovens e adultos, que correm para não levar uma bexigada nas costas – bexigas de boi infladas, arremessadas com força (outra tradição dos imigrantes).
Durante meses, antes da festa, os moradores da fazenda colecionam bexigas dos bois mortos na região para encher de ar. Os golpes provocam um estalido estridente, que deixa as costas vermelhas e um cheiro pouco agradável no ar. A brincadeira já se tornou tão tradicional e aceita pelo público que há sempre gente fazendo questão de entrar na pancadaria. Há também os palhaços conhecidos como “linguiceiros”, que carregam uma linguiça calabresa mergulhada em cerveja. Ela é passada nos lábios dos mais distraídos e deixa um gosto amargo na boca.
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As máscaras de papel machê usam materiais reciclados e inspiração europeia |
Outro aspecto importante na festa é seu caráter ecológico. A grande maioria das máscaras é produzida com papel reciclado, papel machê e materiais como sementes, flores, sucata, massa de biscuit, sisal, palha de milho e sacos plásticos. Na maioria das vezes é confeccionado um modelo de argila, sobre o qual é aplicado o papel machê e, depois, materiais de decoração. Embora já comecem a surgir fantasias feitas de fibra de vidro, que confere maior resistência e durabilidade, o costume de reciclar os materiais e usar com criatividade surrealista ainda permanece.
Mais do que a alegria de brincar, a folia dos monstros de Leme transmite a mensagem de que para preservar a tradição e a natureza é preciso reciclar também as ideias.