O medo tem a idade da humanidade. Desde os primórdios de nossa jornada no planeta, existe, no nosso imaginário, uma área de mistérios ameaçadores que nada parece capaz de extinguir. E qualquer mistério nasce da dúvida: “que barulho foi esse? O que é aquela luz no horizonte? O que existe depois da morte? Ou antes da vida?” Ao longo do tempo, as respostas foram sendo fornecidas pela ciência. Mas ainda existem aquelas dúvidas que hoje continuam tão inquietantes quanto eram séculos e séculos atrás. A saída para nós, criaturas curiosas que somos, foi inventar possíveis respostas — e acreditar nelas. Assim se manteve viva (e habitada) a zona de mistério da nossa imaginação.
É nesse espaço que residem as lendas e os contos de assombração. Sobretudo no Brasil, onde as histórias de fantasmas e monstros há tanto tempo atrapalham o nosso sono. Nossos pais, avós e bisavós costumavam ouvir narrativas sinistras de seus pais, avós ou bisavós, e essa transmissão tornou-se parte de nossa essência cultural. Prova disso é a importância dada à oralidade em diversas áreas de conhecimento, como Letras, Sociologia ou Antropologia.
Mas houve uma transformação. Com o passar do tempo, esses mitos e lendas sofreram um processo de “infantilização” ao serem recontados. Isso talvez seja resultado do crescente predomínio do pensamento cientificista nos meios intelectuais brasileiros, a partir de meados do século 19. Havia o entendimento de que era importante, para a construção de uma identidade nacional, a preservação da tradição oral; mas as narrativas folclóricas de assombrações seriam colocadas em pé de igualdade com os contos de fadas, as chamadas “histórias da Carochinha”.
Da ameaça à diversão
Se no início da formação da sociedade em terras do Novo Mundo era comum acreditar em monstrengos e visagens à espreita em densas florestas e lúgubres ruínas, por outro lado, em um contexto dominado pela ciência e pelas máquinas, tais crenças deveriam apenas ser vistas como curiosidades. Ou seja, mais divertidas do que ameaçadoras. Assim, o Saci e a Mula sem cabeça, que tanto apavoram os viajantes nos caminhos ermos do interior do Brasil, passaram a ser retratados em ilustrações coloridas, em livros dirigidos às crianças.
É possível que esse pensamento tenha desestimulado escritoras e escritores do país a produzirem obras de ficção baseadas no imaginário popular assombrado. Por aqui, não tivemos um autor como o norte-americano Washington Irving (1783-1859), que, com o seu conto A lenda do cavaleiro sem cabeça, fez, do encontro de Ichabod Crane com a sinistra figura do título nas veredas escuras da Nova Inglaterra, uma das passagens mais lembradas da literatura norte-americana.
Na cena literária brasileira do século 19 e em boa parte do 20, as lendas tiveram pouco lugar. Em um sistema sucessivamente dominado pelo Romantismo com tênue influência do gótico, depois moldado pelo Realismo/Naturalismo e consolidado no Modernismo, houve exíguo espaço para uma produção nacional de romances, novelas ou contos tematizando o pavor provocado pela nossas assombrações mais típicas.
A importância de Câmara Cascudo
Memorial Câmara Cascudo em Natal/RN |
Porém, se olharmos mais atentamente, vamos notar que essas histórias existem. São obras de ficcionistas que abraçaram o registro do folclore, dando vida literária às lendas rurais ou urbanas difundidas pela oralidade. E quando falamos em folclore, é impossível não nos lembrarmos do potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). Entre dezenas de livros deixados por ele, destaca-se a Geografia dos Mitos Brasileiro (a primeira edição é de 1947): possivelmente, o mais completo bestiário da nossa “fauna” sobrenatural.
Em um dos verbetes da Geografia, o folclorista e historiador descreve, por exemplo, o quanto poderia ser asqueroso o comportamento do duende conhecido em Minas Gerais como “Mão de Cabelo”: “Esse espectro perpassa pela cama das crianças verificando se urinaram no leito. No meio-sono, sente o fantasma papar-lhes (apalpar-lhes) o sexo com suas mãos estranhas, macias, sedosas e tépidas. São mãos feitas com dois molhos de cabelos”.
Apesar de ser referência básica para os estudos etnográficos brasileiros, Cascudo não foi a figura que mais desbravou essa zona crepuscular que é a junção do registro folclórico com a ficção criada para espantar e maravilhar. No século 20, diversos autores se aventuraram nesse mundo de sombras, criando narrativas de horror “involuntárias”, aparentemente agindo com certa rebeldia inconsciente contra o cânone modernista que predominou no pensamento literário no país.
Ademar Vidal, Gilberto Freyre e o nordeste assombrado
O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) também nutria grande interesse por lendas macabras e histórias de fantasmas. No prefácio de uma das tantas edições da sua obra mais conhecida, Casa Grande & Senzala (1933), Freyre revela ocorrências estranhas em um casarão do século 17, sede de um engenho em Pernambuco que havia sido abandonado: “eram barulhos de louça que se ouviam na sala de jantar; risos alegres e passos de dança na sala de visita; tilintar de espadas; ruge-ruge de sedas de mulher; luzes que acendiam e se apagavam de repente por toda a casa; gemidos; rumor de correntes se arrastando; choro de menino; fantasma do tipo cresce-míngua”.
Mas Freyre foi muito além no campo do sobrenatural. Em 1955, publicou um livro totalmente dedicado ao tema: Assombrações do Recife Velho. São mais de 30 instigantes crônicas sobre as fantasmagorias da capital pernambucana — um velho teatro assombrado, tesouros revelados por almas penadas, espíritos pecadores em desespero pedido missas e orações, lobisomens perseguindo mulheres, um morto-vivo abordando passantes nas ruas à noite, e por aí vai. Textos que recontam, de forma muito particular, as lendas e os “causos” pertencentes ao imaginário dos moradores da cidade, ou mesmo ocorrências inexplicáveis que chegaram a ser registradas pela imprensa nas primeiras décadas do século 20.
Entre tantos relatos, chama a atenção como Freyre, um escritor de muito recursos, explica os sofrimentos de um fidalgo que tinha frequentes encontros com o Diabo em função de um pacto misterioso: “E quando voltava do encontro com o Maldito, durante horas parecia que o barão ia botar a alma pela boca, de tão mortalmente fatigado. A alma e o sangue, pois o seu rosto era então o de um cadáver e suas mãos, também, as de um defunto”.
Um das noveletas de Griz narra a desventura de um caixeiro-viajante que se vê obrigado a pernoitar num casarão habitado por um espectro horripilante: “...uma figura de pesadelo, entre o ser humano e o ser do outro mundo, em cujo rosto barbudo e terroso se destacavam duas enorme órbitas vazias. Não tinha lábios, mas só dentes expostos de caveira. O queixo do fantasma oscilava como se fosse cair, deixando ver o vazio larga boca sem língua. Seus enormes dentes cor de terra se tocavam produzindo um lúgubre ruído de osso atritando”. O texto consta no livro O Cara de Fogo (1969). Por sinal, o conto que batiza a coletânea trata da aparição de uma cabeça flutuante em chamas que surge numa das curvas de uma velha estrada de ferro.
Mineiros e paraenses também contam
Ilustração do livro Visagens e Assombrações de Belém, Walcyr Monteiro valorizava ilustrações em suas obras. |
O jornalista e escritor mineiro Lincoln de Souza (1894-1969) coletou histórias sobrenaturais repetidas pelos moradores da sua cidade natal, São João del-Rei. Os relatos foram compilados no livro Contam que…, escrito em 1920 e que chegou a ter 12 reedições. Lembrando o cenário de ruas estreitas, calçadas com pedras irregulares e casario colonial do município histórico, Souza tece relatos curtos e impactantes. Narra, por exemplo, o macabro caso da senhora rica do século 19 que serviu ao marido, sem que ele soubesse, um prato com o coração de uma jovem negra escravizada — uma vingança infame motivada por ciúme doentio.
Outro relato é o do padre chamado por um paroquiano para tirar da boca de um recém-falecido a hóstia que havia sido posta lá por fiéis piedosos. “O pobre pecador comungou sem que se houvesse confessado, momentos antes de morrer”, uma falta grave que não deixaria a pobre alma descansar em paz. O pároco cumpre o pedido no estranho velório, que não era acompanhado por ninguém. E, logo depois de remover a hóstia da boca do cadáver, entendeu de quem se tratava o homem que pediu o seu auxílio: “Ele já vira alguém com aqueles mesmo cabelos empastados, aqueles olhos amortecidos, aquela boca repuxada e sem cor (...) e quase desmaiou num pavor, num arrepio de morte: o homem que o fora chamar, o que estava ali à sua frente, não era outro senão o que jazia momentos antes dentro do caixão — o defunto…”
Já Walcyr Monteiro (1940-2019) foi o cronista das lendas urbanas da capital do Pará. Em sua obra mais conhecida, Visagens e Assombrações de Belém (1986), o jornalista e folclorista reúne várias histórias sobrenaturais repetidas nas conversas dos moradores da cidade. Gritos fantasmagóricos numa pedreira, vultos numa antiga ponte de madeira sobre um igarapé, aparições de um padre sem cabeça, um fantasma revelando a localização de uma “botija” (o tesouro escondido das alma penadas), o espectro de moça sem rosto: esses são apenas alguns dos relatos ficcionalizados.
Entre todos os capítulos de Visagens e Assombrações de Belém, destaca-se a descrição da mais conhecida assombração local: "A Moça do Táxi". À noite, uma jovem sozinha em uma avenida deserta chama um táxi e pede ao motorista para levá-la ao Cemitério de Santa Izabel. Chegando lá, ela diz que está sem dinheiro. Então, pede ao taxista para que vá receber, no dia seguinte, a quantia em uma determinada residência, e entrega a ele um papel com o endereço. Pela manhã, o sujeito vai à casa indicada, e lá a família revela que a tal moça era uma filha morta há anos, que, nos dias em que fazia aniversário, costumava ganhar do pai um passeio de táxi por Belém. Para provar, o pai e a mãe levam o motorista ao cemitério, onde mostram a ele a foto gravada no túmulo da jovem.
Graças a trabalhos como esses, perdura uma certeza: as lendas, as assombrações e o folclore no geral continuam vivos em nosso imaginário, seja inspirando o horror, seja em outros campos da ficção. Há períodos em que parecem perder força, mas há outros em que ressurgem poderosos e reimaginados por artistas contemporâneos. Prova disso é o sucesso da série Cidade Invisível, de Carlos Saldanha, que estreou em fevereiro na Netflix.
Na literatura de horror, escritores e escritoras atuais destacam-se ao utilizar essa rica tradição para assombrar. É o caso da historiadora mineira Angela Leite Xavier, autora de Tesouros, Fantasmas e Lendas de Ouro Preto (2009), uma coleção de narrativas envolvendo personagens históricos e seres fantásticos que teriam sido vistos nos arredores do município secular: Mãe do Ouro, Saci, Lobisomem, Mula Sem Cabeça, além de diversos fantasmas vistos em igrejas e casarões seculares.
Já o escritor potiguar Márcio Benjamin aposta na oralidade para narrar causos assustadores cujo cenário é o sertão nordestino em obras como Maldito sertão (2012) e Agouro (2020). E, no romance Terra de sonhos e acaso (2019), o paulista Filipe de Campos Ribeiro povoa uma cidade fictícia do interior de São Paulo com sinistras criaturas de nosso folclore. A eles, soma-se um número crescente de ficcionistas que vêm explorando o imaginário brasileiro para compor histórias de puro assombro — cultivando e exaltando, assim, os mistérios que sempre farão parte de nós.
Cena da série Cidade Invisível da Netflix, releitura do folclore brasileiro. |
Fonte: Galileu
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