Estação Inferno

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Estação Inferno



Desci as escadas da estação Cinelândia muito rapidamente para tentar entrar na composição do metrô que já soava o sinal de que as portas iam fechar-se. Como de costume, tive que trabalhar até tarde e já passava um pouco das oito horas da noite quando peguei o metrô, que, devido ao horário, não estava cheio. Este era um dos pontos positivos de trabalhar até tarde: além do ligeiro aumento do salário no final do mês, o metrô normalmente estava vazio. As vezes eu até conseguia um lugar para sentar, e hoje, felizmente, foi um desses dias. Sentei-me em um banco vazio, perto da janela – que aliás, não serve para muita coisa, dada a escuridão que consome aqueles intermináveis túneis.

Quando a composição iniciou a viagem, abri minha mochila para pegar o livro que vinha lendo. Lembro-me de ter xingado qualquer coisa quando percebi que o livro não estava ali; “devo ter deixado em cima da escrivaninha do quarto”, pensei, chateado por ter que passar toda a viagem olhando através da janela para a escuridão que nos envolvia como uma onda que, surgida em um mar tempestuoso, envolve um barco pesqueiro qualquer perdido na tempestade, sem qualquer chance de defesa. Felizmente a viagem é curta e leva menos de 20 minutos; o grande problema é passar estes 20 minutos olhando para a escuridão. Einstein certa vez usou uma analogia para explicar a sua Teoria da Relatividade, era algo como “Uma hora passada com uma linda mulher parece um minuto, enquanto um minuto sentando em cima de um formigueiro parece uma hora.”, pois, neste exato momento, eu sentia-me sentado em cima de um formigueiro.

Quando chegamos à estação seguinte, apenas algumas pessoas entraram na composição, ocupando o resto dos lugares que estavam vagos. Ao entrar no túnel, eu já estava um bocado sonolento, com os olhos cerrados, tentando, em vão, enconstar minha cabeça na janela, quando, por um momento, as luzes da composição começaram a piscar, como se estivessem querendo falhar, espetáculo este que durou apenas alguns segundos. Subitamente, a composição desacelerou brevemente, para em seguida retomar a velocidade normal, o que resultou em um tranco um pouco brusco, o que fez com que os passageiros sacudissem levemente em seus assentos; alguns mau-humorados, como de costume, reclamaram do condutor e balbuciaram alguns palavrões. Enquanto nos recompunhamos do breve saculejo, as luzes da composição piscaram novamente, desta vez com um intervalo maior, e pude sentir que a composição perdia novamente a velocidade. Não dei muita importância para estes acontecimentos pois estava quase pegando no sono, e, à medida que meus olhos foram se fechando, sentia meu corpo leve, e minha mente em um estado de torpor muito agradável.

Acordei subitamente, após uma freada brusca da composição em conjunto com um ruído ensurdecedor do atrito de metal contra metal – o que fez lembrar-me de uma antiga professora de química em minha época de ginásio, que quando queria chamar a atenção da turma, tinha o hábito inconveniente de arrastar, com força, as unhas no quadro negro, provocando um som enlouquecedor -, o que fez com que meu corpo fosse arremessado contra o assento à minha frente e meus pensamentos fossem rapidamente desligados do que quer que seja que eu estivesse pensando naquele momento. Movi meus braços tentando apoiar-me em qualquer coisa; tive, por alguns breves segundos, a sensação de estar despencando do vigésimo andar de um prédio em queda livre, tentando desesperadamente agarrar-me a qualquer coisa que minhas mãos pudessem alcançar. Consegui proteger meu rosto com as mãos antes que ele batesse contra o assento, o que resultou em uma das mãos latejando por algum tempo devido ao impacto.

O ruído, que pareceu um eternidade dentro de meus ouvidos, finalmente cessou e a composição pareceu estar totalmente parada. Algumas lâmpadas, que outrora iluminaram o interior do vagão, estavam naquele momento apagadas, e as poucas que restaram resumiam-se a funcionar mal, piscando como os fogos de artifício que iluminam intermitentemente a orla da praia durante a virada do ano. Olhei ao meu redor e vi algumas pessoas no chão, tentando levantar-se com alguma dificuldade. A maioria, como de costume em qualquer situação fora do cotidiano, estavam em desespero, chorando, gritando, rezando. A escuridão que assombrava o túnel ao nosso redor parecia densa a ponto de querer invadir e tomar os poucos focos de luz restantes. Por um breve instante tive a impressão de que a escuridão estava se movendo e sorria maliciosamente para nós.

Apesar do pânico tomar conta das pessoas dentro daquele vagão, consegui manter a calma. Dirigi-me em direção ao comunicador que permite contato com o condutor, na esperança de conseguir qualquer informação que pudesse nos acalmar. Não tive dificuldade em remover a tampa de acrílico que impedia que o botão se movimentasse. Nesse momento algumas pessoas já estavam um pouco mais calmas, ajudadas pelos poucos que ainda estava lúcidos. Girei o botão para a posição emergência e aguardei, em vão, por uma resposta do condutor. Senti um calafrio quando não obtive resposta; ou o rádio estava quebrado, ou o pior tinha acontecido: o condutor havia morrido com o impacto. Entre gritos, choro e frases desconexas, ouvia-se especulações sobre as possíveis causas daquela parada repentina, mas a verdade é que ninguém tinha a mínima idéia do que realmente tinha acontecido.

Sem o comunicador, que nos permitiria saber se a ajuda estava próxima, e sem um único telefone celular que estivesse com sinal suficiente para fazer uma chamada, não tinhamos muito o que fazer. Lembro-me de alguém ter sugerido que tentássemos abrir as portas, idéia que na hora foi contestada por muitos dos presentes. “E se cairmos em cima dos trilhos eletrificados?”, “E se outra composição passar ao lado e atropelar todos que estiverem na linha?”. Os argumentos eram muitos, e válidos inclusive, porém, algumas pessoas não queriam ficar muito tempo ali dentro sem saber o que aconteceria em seguida. Caminhei em direção à porta que separa os vagões, afinal, seguindo por ali, estariamos perto de passageiros de outros vagões e poderíamos, de dentro da própria composição, tentar chegar perto do condutor e saber o que houve, se ele por acaso estivesse vivo. Quando me aproximei da porta, no entanto, um frio percorreu-me toda a espinha, fazendo-me arrepiar e sentir uma estranha sensação de medo e solidão, em uma amargura que por um instante tomou conta de meu coração; ao olhar através do vidro, a única coisa que vi foi a escuridão que nos assolava desde o primeiro túnel que entramos, a mesma escuridão que envolvia a composição como uma onda que, surgida em um mar tempestuoso, envolve um barco pesqueiro qualquer perdido na tempestade. Com os olhos arregalados e sentindo o corpo mole, corri na direção oposta, tentando alcançar a outra porta que nos ligava ao outro vagão. Para meu desespero, a única coisa que vi foi a mesma escuridão. Era como se o nosso vagão tivesse sido abandonado no túnel.

- Os outros vagões sumiram! – gritei, sentindo a respiração ofegante.

- Como assim sumiram? – perguntou-me um outro passageiro, que apesar de visivelmente abalado com a situação, tentava manter a calma

- Olhem através dos vidros! Não há nada a não ser escuridão! Estamos abandonados aqui!

Arrependi-me profundamente de ter pronunciado as últimas palavras, pois após a confirmação visual de que estávamos abandonados ao destino, o pânico instaurou-se novamente; recomeçaram os gritos, choro e rezas.

Quando finalmente nos acalmamos, decidimos, por unanimidade, tentar abrir as portas do vagão e tentar achar uma saída para fora daqueles túneis. Apesar de ter concordado, a idéia não me agradava muito, pois a escuridão do lado de fora parecia agora densa a ponto de querer empurrar o vagão, levando-nos sabe-se lá para onde. Juntamente com outros cinco homens que ali estavam, começamos a forçar a porta, que parecia muito mais forte que todos nós; quanto mais fazíamos força para abrí-la, mais ela fazia força para manter-se fechada. Cheguei a pensar por um momento que o vagão não queria que saíssemos dali.

Inopinadamente, a porta pareceu ceder aos nossos esforços, deslizando bruscamente para os lados, o que produziu um estampido ao terminar de abrir que nos assustou brevemente. Segundos após a porta ter se aberto, um cheiro horrendo entrou, trazido por uma leve brisa, era um misto de azedo e salgado, porém denso e penetrante; naquele momento senti um enorme embrulho no estômago, como se ele estivesse tentando virar pelo avesso sem o meu consentimento. Passado o espanto, e quando o cheiro foi levemente dissipado, viramo-nos para a porta a procura de um caminho a seguir, porém, não conseguíamos enxergar um único palmo a nossa frente. A escuridão que me acompanhava desde o primeiro túnel estava agora tão densa e tão sufocante que chegava a nos ofuscar.

- Vou descer – eu disse, olhando para o chão tentando calcular a altura a que me encontrava deste.

No momento que me preparava para descer, no entanto, fui surpreendido por algo, no mínimo, inesperado. Quando pus o pé para fora do vagão, senti que este chocou-se com algo sólido e rígido. Depois de muito tatear com os pés, concluí que tratava-se de uma plataforma, ou algo no mínimo parecido. Arrisquei apoiar-me com os dois pés, o qual fui bem sucedido. Não fazia o menor sentido, ninguém entendia nada. Como poderia haver uma plataforma no meio de um túnel? E por que diabos não passava nenhuma outra composição por aqueles túneis? A situação que já não fazia nenhum sentido antes, fazia menos ainda agora.

Caminhei cuidadosamente por cima daquela plataforma, cada passo era dado de forma muito cautelosa para evitar cair ou tropeçar em algo inesperado. Apesar de ser bem larga, não consegui saber o quão larga era, mas o comprimento era grande; já havia dado cerca de cinquenta passos sem cair ou tropeçar. Cada passo era acompanhado de meus braços totalmente esticados à frente, como se estivesse buscando uma parede imaginária para me guiar. Algumas pessoas começaram a deixar o vagão e a vir atrás de mim, depois de perceberem que a plataforma era aparentemente segura. O resto, relutantemente, concordou em permanecer no vagão para o caso de alguma ajuda aparecer.

Não sei quanto tempo passamos caminhando naquele passo vagaroso e precavido, mas tenho certeza de que foi bastante. Sempre à frente naquela jornada rumo ao desconhecido, fora eu quem encontrou uma porta fechada à nossa frente. Eu estava tateando cegamente, com os braços esticados a frente, quando senti que minhas mãos haviam tocado alguma coisa. A textura lembrava madeira revestida com fórmica, e sua largura media pouco menos de um metro; quando encontrei a maçaneta, fria e com uma leve camada do que parecia ser ferrugem, tentei girá-la e percebi então que a porta estava trancada, o que não era surpresa. Como não havia qualquer maneira de prosseguir além daquele ponto, a solução foi arrombar a porta, o que se mostrou uma tarefa muito simples quando executada por mais de uma pessoa ao mesmo tempo.

Ao abrir a porta, quase perdi os sentidos quando novamente aquele cheiro azedo que nos beijou levemente a face quando abrimos a porta do vagão tornou a beijar-nos ao abrir esta porta; desta vez, porém, o cheiro era mais forte e mais azedo. Quando meu cérebro se acostumou com o cheiro, olhei para o lugar que a porta nos conduziu. Duas lâmpadas fluorescentes dispostas horizontalmente em uma calha suja tentavam quase que inutilmente iluminar a sala úmida e quadrada, de aproximadamente vinte metros quadrados, totalmente vazia, com que nos deparamos. As paredes de pedra sem nenhum tipo de acabamento tinham cerca de três metros de altura e formavam ângulos de noventa graus com o teto, tambem sem acabamento, de onde surgiam alguma goteiras. Demorei a reparar uma escada embutida na parede oposta à porta em que estávamos. Os degraus pareciam de ferro e estavam bastante maltratados pela ação do tempo, encontrando-se totalmente oxidados. Olhando para a parte do teto aonde estava a escada, percebi uma pequena entrada de aproximadamente um metro quadrado. Ali jazia toda a nossa esperança de sair daquele lugar.

Escolhemos aleatóriamente um candidato para se aventurar para aquela extremidade. Não demoramos nesta escolha pois a vontade de encontrar uma saída era compartilhada por todos que ali estavam. Quando o sujeito deu o primeiro passo para dentro da sala, no entanto, o inesperado – e inimaginável, diga-se de passagem – aconteceu. As paredes, antes de pedra e sem nenhum acabamento, adquiriram uma cor avermelhada, tão forte que parecia brilhar, com alguns detalhes em amarelo, e pareciam dançar lentamente ao som de uma lenta e hipnótica música eletrônica. O que antes era o teto parecia agora um amontoado de chamas que teimavam em retornar ao lugar de onde queimavam, sem fazer, no entando, som algum. O chão tornou-se um abismo aparentemente sem fim, escuro e sombrio como a escuridão que vinha nos acompanhando desde o início. Passamos a ouvir gritos de agonia e dor profunda, parecia que muitas pessoas estavam sendo torturadas ininterruptamente. Os gritos ecoaram dentro de minha cabeça, como se naquele momento meu cérebro tivesse se transformado em geléria, deixando a caixa cerebral totalmente vazia. Aquele cheiro, azedo, parecia jorrar aos montes de dentro do abismo, desta vez sem trégua ao nosso olfato. O pobre sujeito, que já havia posto um dos pés dentro da sala, não conseguiu segurar-se e despencou, rumo ao desconhecido – ou rumo ao inferno, como um dos presente teimou em apelidar aquela sala. Nada pudemos fazer quando um grito forte e desesperado, recheado de terror foi proferido de sua garganta. Atônitos, ainda ponderando se o que estávamos assistindo era real ou apenas um reflexo maldoso de nossas mentes sobre nossos corpos cansados, só pudemos olhar a queda até que o som do grito fosse sumindo, tornando-se cada vez mais distante, como uma música em processo de fade-out.

Ainda sem conseguir compreender totalmente o que havia ocorrido, ficamos parados ali na porta, contemplando o que parecia ser o ponto mais distante do universo, o ponto aonde ninguém jamais chegara. Se eu fosse religioso, teria acreditado que aquilo era uma das entradas do inferno como alguém disse anteriormente. Tomada pelo desespero que nos consumia, uma das pessoas que integrava o grupo virou-se para fugir, gesto que foi acompanhado por todos os presentes, mas, se aquilo era o inferno, ele não estava disposto a nos deixar fugir. Fomos impedidos de correr quando uma força invisível começou a nos sugar em direção ao abismo, tal qual os integrantes de uma nave espacial que tem um buraco na fuselagem são puxados pelo vácuo. Não havia aonde segurar, e a força era demasiadamente forte. Os mais fracos foram puxados sem oferecer qualquer resistência. Eu consegui me segurar na porta com toda a força que ainda me restava, vendo, impotentemente, as pessoas sendo tragadas para aquele buraco. Alguns tentavam agarrar-se a mim na esperança de permanecerem vivos, e eu tentava ajudá-los a ficar, mas a fome do abismo era maior; eu ouvia os gritos, o choro, sentia o desespero de cada pessoa que passava por mim e era engolida por aquilo. Eu chorava, e mesmo as lágrimas que escorriam para for a de meu rosto era também sugadas pelo insaciável abismo; sentia minha mente derreter como geléia a cada gemido proferido pelo abismo, tive a impressão de que aquilo estava vivo e falava – na verdade, eram grunhidos lentos e abafados, grave como se tivesse sido pronunciado por alguém sem as cordas vocais.

Alguns minutos depois da última pessoa ter sido engolida, minha resistência estava-se esgotando; quando, quase desistindo de segurar-me na porta, ouvi o barulho vindo do abismo cessar, e a força que nos puxava subitamente parou. Caído no chão totalmente tomado pelo cansaço, olhei para trás e vi a mesma sala que viramos quando abrimos a porta. As mesmas paredes de pedra, a mesma escada enferrujada na parede. Fechei a porta e, com o coração acelerado, a respiração ofegante, os olhos inertes pelo terror, tentei correr de volta ao ponto de origem, mas minhas pernas não obedeceram, senti que a escuridão novamente avançava sobre mim; cai inconsciente no chão, com o corpo totalmente inerte.

Quando acordei, estava em um quarto de um hospital qualquer no centro do Rio de Janeiro. O médico me disse que eu estava bem, tivera apenas um desmaio devido à fadiga e recomendou-me diminuir um pouco o ritmo de trabalho. Ao perguntar como havia chegado ali, limitou-se a dizer-me que eu fora trazido por funcionários do metrô, após ter sido encontrado desmaiado na estação da Cinelândia, alguns metros após a entrada do túnel em direção à Zona Norte. Cheguei a retornar à estação alguns dias depois para informar-me sobre o que realmente havia ocorrido, mas tudo o que sabiam é que alguns transeuntes chamaram a segurança ao me ver passar a placa de “Acesso Restrito. Somente pessoal devidamente identificado e autorizado, de acordo com a legislação interna em vigor.” e sumir na escuridão. Os funcionários disseram que nunca houve no metrô um acidente grave como o que eu havia reportado; tampouco sabiam da existência de qualquer plataforma dentro dos túneis ou de qualquer sala com a descrição que eu dera.

Apesar de alguns colocarem em dúvida minha sanidade, diante da falta de qualquer evidência que possa comprovar os eventos que presenciei, até hoje, sempre que fecho meus olhos, ainda sinto aquele cheiro azedo impregnando o meu nariz, e ainda posso sentir a densa escuridão avançando em minha direção tentando tragar-me para algum lugar que desconheço qual seja. Quando cai a noite e me recolho para a cama para tentar dormir, ainda posso ouvir os gritos recheados de dor e angústia que alcançavam nossos ouvidos partindo de dentro do abismo; ainda posso ouvir, claramente, aquele estranho grunhido proferido pelo abismo, como se estivesse me fazendo um convite.


Um conto de Luiz Poleto

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